Análise

Quem surgiu primeiro: o «soccer» ou o «football»?

António Ribeiro / March 23, 2021

«Todos estes países jogam o mesmo tipo de football? É que o football britânico é muito diferente do football que temos nos Estados Unidos», pergunta a personagem ficcional Ted Lasso a José Mourinho, num vídeo promocional da recente série de comédia emitida pela Apple TV+. Protagonizada pelo norte-americano Jason Sudeikis, Ted Lasso (2020) conta-nos a história de um reconhecido treinador de futebol americano que aceita de braços abertos o desafio de orientar uma equipa da Premier League, mesmo sem possuir qualquer tipo de conhecimento ou experiência no soccer. Enquanto esta série pocura valorosamente esbater as diferenças e encontrar as semelhanças entre as duas modalidades desportivas, permanece ainda no espaço público e digital uma acesa discussão sobre qual dos dois é o verdadeiro football, questionando-se ferozmente a utilização do termo soccer. Afinal, quem tem razão? O Soccer em Português comprometeu-se a encontrar respostas.

https://www.youtube.com/watch?v=3-7OSa0pXfw

Comecemos pelo historiador David Wangerin, autor do livro Soccer in a Football World (2006), que nos relata o caminho que os Estados Unidos tomaram rumo ao isolamento do seu football. Até meados do século XIX, o críquete era o desporto mais popular do país, perdendo o lugar para o basebol na ressaca da Guerra Civil, e pouco depois para o gridiron football (gridiron significa grelha), conhecido por futebol americano. O nascimento oficial do gridiron football data de 6 de Novembro de 1869, dia em que duas equipas universitárias se defrontaram sob a égide das novas regras. A prática desportiva acontecia sobretudo nas universidades, onde inúmeras variantes de football eram disputadas a nível nacional, acabando o gridiron por se sobrepor às demais e prevalecer até hoje.

Quanto ao futebol, podemos encontrar relatos fundamentados de civilizações antigas a dar pontapés numa bola um pouco por todo o mundo, mas atribui-se justamente a invenção da modalidade aos britânicos, por terem sido eles a estabelecer as regras do futebol moderno, corria o ano de 1863. Esta standardização da modalidade, denominada de association football, facilitou a separação da outra variante bastante popular em terras britânicas, o rugby football. À imagem do que acontecia nas universidades norte-americanas, também os clubes britânicos por vezes se defrontavam em séries de várias partidas, alternando as versões do jogo. Mas, ao passo que o gridiron football disparou a solo no que respeita a popularidade, deixando os restantes no esquecimento, tanto o association football como o rugby football registaram um crescimento significativo em Inglaterra logo após a sua regulamentação. Foi no virar do século que o association football assumiu um protagonismo mais evidente no país, pois estava associado às classes trabalhadoras, em oposição ao rugby football, vinculado às elites da escola pública.

A coexistência destas duas versões deu origem a naturais confusões no próprio discurso oral, dada a parecença entre os termos. Em finais do século XIX, a utilização da abreviação «-er» tornou-se bastante popular entre os estudantes das principais faculdades britânicas (breakfast virava brekker, por exemplo). Seguindo essa tendência, o rugby football passou naturalmente a rugger, e o association football tornou-se soccer. Isso mesmo, a palavra soccer nasceu em Inglaterra.

No livro It’s Football, Not Soccer (And Vice Versa) (2018), os professores universitários Stefan Szymanski e Silke-Maria Weineck, para além de aclararem as raízes histórica do termo soccer, defendem que o debate feroz que decorre habitualmente no espaço digital acerca desta matéria alimenta-se sobretudo de um sentimento anti-americano. Além de concluírem que soccer é uma palavra de origem inglesa, demonstram também que esta foi substancialmente utilizada na literatura desportiva do país ao longo do século XX, sofrendo um declínio abrupto no seu uso somente a partir da década de 1980.

Trata-se de um fenómeno curioso, tendo em conta que os Estados Unidos não são os únicos países no mundo a utilizarem a palavra soccer para se referirem ao futebol. Austrália, Nova Zelândia, Irlanda, Canadá e Índia, por exemplo, também têm outras versões de football dominantes nos seus territórios, e precisam de recorrer ao uso do soccer. Curiosamente, quase todas as nações citadas são antigas colónias britânicas.

Assim sendo, movimentos digitais como o It’s Football Not Soccer, assim como os anti-corpos norte-americanos que geram, além de protagonizarem confrontos inócuos e discussões aberrantes, contribuem para a desvalorização da língua e da sua riqueza. Se existem vários casos de palavras que diferem entre os Estados Unidos e outros países de língua inglesa, por que razão nos devemos insurgir quanto ao soccer?

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