O sucesso fulgurante obtido por ‘Tata’ Martino ao comando do Atlanta United, pontuado pela conquista da MLS logo no segundo ano de existência do clube, trouxe de volta as atenções para o treinador argentino. Entre convites e sondagens, Martino decidiu retornar ao futebol de selecções, e aceitou o convite do México no começo deste ano. Para ocupar o lugar vazio, os responsáveis do conjunto rubro-negro escolheram Frank de Boer, fora das lides técnicas desde Setembro de 2017. Será o técnico holandês a escolha certa para dar continuidade a este arranque triunfal do Atlanta United? Teria José Mourinho razão quando o apelidou de «pior treinador da história da Premier League»?
Comecemos por identificar o perfil de De Boer a partir da sua invejável carreira enquanto futebolista. Em primeiro lugar, De Boer é um sujeito habituado a conviver com a vitória e com os grandes palcos. Entre outros títulos e reconhecimentos individuais, o antigo defesa sagrou-se pentacampeão holandês pelo Ajax (1989/90, 1993/94, 1994/95, 1995/96 e 1997/98), emblema ao serviço do qual venceu também uma Liga dos Campeões (1994/95), uma Taça UEFA (1991/92), uma Supertaça Europeia (1995), e uma Taça Intercontinental (1995). É hoje o segundo jogador holandês mais internacional de sempre (112 jogos), apenas superado pelo guardião Edwin van der Sar, e foi pela ‘laranja mecânica’, na qualidade de capitão, semifinalista do Campeonato do Mundo de 1998 e do Campeonato da Europa de 2000. Podemos inferir então, considerando esta entrega da braçadeira a De Boer, o reconhecimento de uma capacidade de liderança ao actual técnico do Atlanta United.
No campo, Frank De Boer ocupava preferencialmente o eixo defensivo, embora pudesse actuar com igual mestria na lateral esquerda. Para além das competências defensivas notáveis, De Boer destacou-se sobretudo pela sua inteligência nos relvados, e abordagem positiva aos jogos, certamente herdada das escolas do Ajax. Exímio no passe, quer fosse ele longo ou curto, e uma ameaça constante nas bolas paradas.
Enquanto técnico, deu os primeiros passos nas camadas jovens do Ajax, e mais tarde foi adjunto de Bert van Marwijk na selecção holandesa que alcançou a final do Campeonato do Mundo em 2010. Acabaria por retornar ao seu clube do coração ainda no mesmo ano, mas desta feita para orientar a primeira equipa. O que seria uma solução temporária face à demissão do antecessor Martin Jol, transformou-se num reinado de seis anos, marcado por um tetracampeonato inédito na história da principal prova de clubes do futebol holandês. Porém, este sucesso dentro de portas não teve continuidade nas seguintes experiências de Frank De Boer fora da Holanda, onde não conseguiu manter-se num novo clube por mais de três meses. Completou quase um trimestre sofrível ao comando do Inter de Milão, e na época seguinte, um capítulo desastroso no Crystal Palace que se condensou a dez semanas assinaladas por quatro derrotas em igual número de jogos na Premier League (com zero golos marcados).
Afinal, como devemos classificar o perfil e o estilo de Frank de Boer, capaz de apresentar um futebol positivo e titulado no Ajax, e ao mesmo tempo, de fracassar rotundamente na Serie A e na Premier League? Para nos ajudar a entender melhor o treinador de Boer, o Soccer em Português solicitou a ajuda de Filipe Coelho (@FilCCoelho), seguidor acérrimo do futebol holandês:
«O reinado de Frank De Boer em Amesterdão foi longo. Tudo somado, foram mais de 260 jogos divididos por seis épocas, com o tal tetra conquistado entre 2011 e 2014; mas o seu epílogo vestiu-se de cores negras, que o Ajax viu escapar os últimos dois campeonatos para o seu arqui-rival PSV. Em 2015/2016, aliás, tal sucedeu na última jornada, e mais precisamente nos últimos vinte minutos de uma longa época que agudizou ainda mais o (natural) desgaste de De Boer.
Ainda que com números interessantes – na última temporada, o Ajax esteve 18 jogos sem sofrer qualquer golo e assinou uma 2ª volta sem experimentar o sabor da derrota –, o técnico holandês era, em diversas ocasiões, acusado de não ter o rasgo e agilidade necessários para ultrapassar os problemas que o seu robotizado 4-3-3 enfrentava num ou noutro momento. A equipa vivia sobretudo de um jogo tendencialmente exterior, com grande intervenção dos extremos (predominantemente encostados às alas), apelando à capacidade de desequilíbrio e à superior qualidade individual em terrenos holandeses. Esse potencial de resolução no duelo – uma matriz individual que o colectivo procurava potenciar –, aliado a uma capacidade para saber congelar o jogo com bola – muitas vezes, até, tornando-se uma equipa algo monótona nos seus processos – era praticamente garante de ascendente interno no país das tulipas. Acresce ainda a aposta dos médios nos remates de longa distância (Klaassen, Bazoer e Gudelj enquanto garantes de rendimento constante nesse item). Defensivamente, era uma equipa à imagem holandesa: sem uma organização de excelência ou com tremendo rigor na ocupação dos espaços, enveredando, não raras vezes, por acompanhamentos individuais, inclusivamente no miolo do terreno.
Refira-se ainda que, no mencionado ciclo temporal de seis épocas, não houve uma única campanha digna de realce na Europa da parte do Ajax, seja na Liga dos Campeões ou na Liga Europa – um upgrade da dimensão competitiva que o conjunto de De Boer nunca conseguiu acompanhar. A saída do comando técnico acabou por ser como que um alívio para ambas as partes. Para o próprio clube/equipa, que precisava de soltar as amarras que, muitas vezes, Frank lhe impunha; e para o técnico holandês, desgastado (e quiçá desmotivado), depois de seis épocas e de já pouco ter a provar no contexto interno».
Posteriormente, tanto no Inter de Mião como no Crystal Palace, ficou sempre a imagem de um desenquadramento entre o estilo que Frank De Boer procurou imprimir, e o tipo de jogadores que tinha à disposição. O extremo Wilfried Zaha confirmou essa mesma ideia pouco tempo depois da dispensa do técnico holandês, salientando a incompatibilidade entre o futebol de posse e grande parte do plantel do Crystal Palace de então. Estaremos perante um treinador demasiado agarrado a uma filosofia de jogo, incapaz de trabalhar estratégias alternativas, e de se adaptar às realidades que encontra? O historial diz-nos que sim.
No entanto, foi esta forma de pensar o jogo de De Boer que motivou o convite do director desportivo do Atlanta United, Carlos Bocanegra. «Para além de corresponder aos valores centrais do nosso clube, a filosofia do Frank De Boer sobre o jogo alinha-se de forma inequívoca com a nossa. Isto é evolução, e não revolução. Temos um clube óptimo, um conjunto de jogadores excelentes, e somos bem-sucedidos. Então, ter alguém que partilhe essa visão filosófica e abordagem para jogar o jogo é realmente importante», explicou o ex-internacional norte-americano Bocanegra.
A estima parece recíproca, visto que De Boer foi pronto em afirmar que encontrou em Atlanta um clube melhor organizado do que os antecessores Inter de Milão e Crystal Palace. Mais do que isso, o novo técnico também se deparou com um plantel recheado de individualidades tecnicistas que servem os seus princípios de jogo, habituados a querer ter bola com ‘Tata’ Martino. E se a estrela da companhia Miguel Almirón acaba de rumar ao Newcastle por um valor recorde (aprox. 24 milhões de euros), esta será substituída por Pity Martínez (ex-River Plate), um dos principais criativos argentinos da actualidade. Aparentemente, o plantel do Atlanta United enche as medidas de Frank de Boer, e o holandês poderá colocar finalmente as suas ideias em prática com os devidos intérpretes. Contudo, a pressão será elevada e madrugadora, visto que De Boer herdou de Martino a desafiante possibilidade de disputar já em Fevereiro a Liga dos Campeões da CONCACAF, prova nunca antes conquistada por emblemas da Major League Soccer. Conseguirá Frank De Boer quebrar a imagem negativa deixada após as duas últimas experiências na Europa? Vale a pena acompanhar esta narrativa futebolística, que terá início oficial no próximo dia 21, na 1ª Mão dos Oitavos-de-final da Liga dos Campeões, frente aos costa-riquenhos do Herediano.